quinta-feira, 29 de março de 2012

O violinista inconsciente

O violinista inconsciente de Judith Jarvis Thomson As soluções de Bento XVI para a questão do aborto dificilmente são aceitas pelas feministas mais radicais, e vice-versa A instigante discussão em torno da moralidade do aborto geralmente recai numa contradição insolúvel entre dois princípios muito caros a toda humanidade, o da vida e o da liberdade. Resolver essa dificuldade é um desafio que tem mobilizado, ao longo da história, pensadores das mais diversas esferas sociais. Essa pluralidade de perspectivas é uma característica natural e necessária a um debate que abarque componentes técnicos, religiosos, filosóficos, psicológicos, econômicos, legais e sociais, dentre outros. A falta de consenso entre proponentes e adversários do aborto segue, em parte, dessa complexidade de pontos de vista. As soluções de Bento XVI, por exemplo, dificilmente são aceitas pelas feministas mais radicais, e vice-versa. Então são propostas soluções alternativas, às quais surgem respostas, e réplicas, e tréplicas, e assim por diante, ad infinitum. Curiosamente, essa impossibilidade de se alcançar uma solução amplamente satisfatória não tem desmotivado defensores e críticos do aborto. Pelo contrário, ei-los por todos os lados, perigosamente convictos sobre o certo e o errado, defendendo de modo cada vez mais apaixonado seus ideais. A filósofa e feminista Judith Jarvis Thomson O debate sobre a moralidade do aborto passa quase obrigatoriamente pelo artigo A Defense of Abortion, da filósofa americana Judith Jarvis Thomson. Publicado em 1971, no auge, portanto, da chamada “revolução sexual”, o texto de Thomson, embora sóbrio, foi concebido sob forte influência do movimento feminista. Seu objetivo principal é defender a autonomia reprodutiva da mulher. Para isso, o grande trunfo do artigo é a analogia que ficou amplamente conhecida no círculo bioético como “unconscious violinist analogy”, isto é, “analogia do violinista inconsciente”. Trata-se de um experimento imaginário que lança novas luzes sobre a tensa antinomia entre a liberdade da mulher e o direito do feto à vida. Para isso, Thomson convida seus interlocutores a se colocarem no lugar de alguém que precisa decidir entre a própria liberdade e a vida de outra pessoa. Ao estimular essa mudança de perspectiva, a filósofa faz com que seus interlocutores abram mão de seus ideais cristalizados e analisem a questão de um modo totalmente novo, partindo do zero, supostamente sem preconceitos. Para salvar a vida do violinista, permita a manutenção da conexão entre vocês durante nove meses Analogias são figuras de linguagem que estabelecem relações de semelhança entre coisas ou fatos distintos. A afirmação a seguir ilustra uma analogia: “os patins estão para o patinador assim como os esquis, para o esquiador”. Nesse caso, as relações são entre “patins” e “esquis”, e entre “patinador” e “esquiador”; isso sem contar as implícitas, como entre “patinar” e “esquiar”. Já o experimento imaginário de Thomson, adaptado aqui livremente para o português, conta a história de alguém que fora raptado, à noite, enquanto dormia. Ao acordar, ele se viu num leito de hospital e observou que havia pequenos tubos saindo do seu braço e se conectando ao de outra pessoa, inconsciente na cama ao lado. No mesmo instante, lhe apareceu o diretor do hospital se desculpando: “caso soubesse, jamais teria autorizado tal situação”. “Mas, de qualquer modo”, ele explicou, “você foi raptado por um grupo de amantes da música, para salvar a vida do melhor violinista do mundo. Esse músico desenvolveu uma doença rara nos rins. Mas, feliz ou infelizmente, descobriu-se que você, dentre todo o resto da humanidade, é a única pessoa capaz de curá-lo. Para isso, basta que você, num gesto de bondade, permita a manutenção da conexão entre vocês durante nove meses. Depois disso, cada um poderá seguir sua vida normalmente. Você estaria disposto a sacrificar sua liberdade durante esse curto período de tempo para salvar a vida desse talentoso homem?”. Você estaria disposto a sacrificar sua liberdade para salvar a vida desse talentoso homem? Para um bom entendedor, os paralelos entre uma gravidez indesejada e a analogia do violinista são claros. Nos dois casos, há uma grave antinomia entre direito à vida e liberdade. Em A Defense of Abortion, a conclusão de Thomson será que o direito à vida não garante o direito ao uso do corpo de outra pessoa e, por conseguinte, é moralmente permissível que a pessoa raptada se desconecte do violinista. Assim, por analogia, Thomson arremata: o aborto é moralmente permissível. Evidentemente, no entanto, ninguém está obrigado a concordar com ela. De todo modo, o maior mérito do artigo de Thomson não é sua conclusão, e sim sua pergunta: você sacrificaria sua liberdade em nome da vida de outra pessoa?

Nenhum comentário:

Postar um comentário